Durante as décadas de 1980 e 1990, Antarctica e Brahma protagonizaram na praça de São Luís, uma das mais acirradas disputas pela liderança do mercado cervejeiro em nível de Brasil. Com as devidas proporções, pelo número de consumidores, essas duas marcas da bebida à base de água, lúpulo e malte disputaram gole a gole, copo a copo e bar a bar a preferência dos apreciadores de cerveja na Ilha de São Luís, como um todo.
Naquela época, clubes recreativos e esportivos; restaurantes chiques; botecos; depósito de bebidas; bares e barracas da orla marítima; festas carnavalescas; arraiais juninos; eventos esportivos, culturais e religiosos em praça pública; feiras agropecuárias; e até a opinião de jornalistas e colunistas sociais de São Luís eram disputados por um batalhão de profissionais contratados pelas fábricas e distribuídoras das cervejarias Antarctica e Brahma. Tratava-se de uma “guerra sem fim”, que tinha como “homem-chave” o garçom, o único personagem capaz de fazer a diferença da pedida da cerveja entre a mesa e o balcão.
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Nesse concorrido cenário, também deve-se fazer registro para a participação, mesmo que de forma tímida, de outras marcas de cerveja que “rodavam” na época, como Cerma (Cerpa), Kaiser e Schincariol (Nova Schin). Essas, rotuladas como low price (preço baixo), penetravam sem muita dificuldade em clubes de reggae, bares, quitandas e biroscas de bairros da periferia e da Zona Rural da capital maranhense.
Isso porque, poucas eram as chances dessas marcas conseguirem espaço nos pontos de venda mais tradicionais e consagrados da cidade, à exceção da Cerpinha Export 350ml, da Skol lata 350ml, da Kaiser em sua versão Bock e da elitizada Bohemia, todavia, sempre em pequenos volumes. O arsenal midiático em nível nacional de Antarctica e Brahma não permitia isso acontecer, inclusive, era comum a contratação de garotos-propaganda de peso como Tom Jobim, Zeca Pagodinho Jorge Ben Jor e Daniela Mercury para reforço de campanhas publicitárias veiculadas através de cartazes, revistas, outdoors, rádio e televisão.
Outras armas importantes deste confronto mercadológico, além da logística e distribuição, eram a negociação de espaços para merchandsing e ações de degustação desses produtos. Placas e painéis luminosos de Brahma e Antarctica eram expostos em pontos de venda, assim como comumente havia a distribuição de brindes para garçons, garçonetes e balconistas, tais como aventais, jalecos, camisas, agendas, abridores de garrafa, bonés, chaveiros, canetas, isqueiros, sempre com as respectivas logomarcas.
Naquela época, o assédio objetivando ganhar a simpatia de proprietários de pontos de venda era uma constância. Além das bonificações sobre volume de compra desses produtos e apoio na reforma ou “montagem” de casas gastronômicas e de entretenimento, equipamentos como freezer, geladeira, mesas, cadeiras, porta-cervejas, cardápios e até custeio de atrações musicais eram proporcionados a esses empresários do setor. Os bens móveis, quase sempre em regime de comodato ou contratos para assim, “garantir” espaço e, principalmente, a exclusividade na venda de determinada marca.
É bom que se diga, que naquele tempo, também passaram por aqui as cervejas Malt 90, Belco Mineira, Santa Cerva e Polar, hoje, todas fora de circulação na Ilha. E merece destaque frisar que em 1998, com toda pompa, a cervejaria Antarctica trouxe para São Luís a Bavária Pilsen ancorada por uma gigantesca campanha de marketing intitulada ‘A Cerveja dos Amigos’, tendo como “âncoras” três duplas sertanejas de renomados cantores.
Essa mega ação foi o suficiente para logo em seguida, a Brahma “reapresentar” ao mercado maranhense a Cerveja Skol em todas as suas versões. Ressalta-se que, diante do reconhecido prestígio e preferência de consumo em nível Brasil, até hoje, a marca Skol nunca perdeu o seu espaço na praça local.
Também é bom lembrar que naquele tempo, não se falava muito em ‘cerveja puro malte’ e muito menos, em garrafas na cor verde, como se propaga hoje em demasia. Atualmente, cervejas dessa categoria e nessas embalagens são vistas como hábito sofisticado de consumo. Naquele tempo, a disputa pelo consumidor era na base do corpo a corpo e no gogó, literalmente falando. Às vezes era na base da “Paixão Nacional” ou “Simplesmente a Melhor” e outras vezes era a chamada “Número 1” que dava as cartas e tinha o domínio de tudo.
A trégua dessa “guerra” mercadológica e publicitária de cervejas ocorreu em meados de 1.999, quando do anúncio em rede nacional da fusão entre as marcas Antarctica, Brahma e Skol com suas linhas auxiliares, através da anuência e aprovação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Na ocasião, a Cervejaria Kaiser ainda ensaiou uma virada de mesa, chamando a fusão de “confusão” aos olhos do consumidor. O fim definitivo dessa “guerra de cervejas” aconteceu no mesmo ano, com o surgimento da Ambev que depois se transformou na mundial AB Inbev.
Muito antes desse ocorrido, o saudoso empresário Manoel Lourenzo Castro, maior e mais atuante distribuidor de cervejas, chope e refrigerantes do Maranhão, em todos os tempos, dizia com altivez: “Aqui na Ilha de São Luís, o consumidor de cerveja é como um aluno que está aprendendo o ABC. Ele pede cerveja por ordem alfabética(…)”, atestando com essa frase de efeito, a liderança da Antarctica, o segundo lugar da Brahma e a terceira posição da Cerma.
O editor deste Blog Hora Extra viveu, conviveu e sobreviveu nessa “guerra”. Por isso afirma com todo conhecimento de causa, que Manoel Castro (in memorian) atendia e entendia do assunto como poucos, tanto que seu nome fechou esta matéria com chave de ouro… Chave de abrir garrafas de cerveja!
Parabéns, belíssima matéria. Eu também sou mais um sobrevivente desta deliciosa guerra das cervejarias, e atesto categoricamente que tudo que aqui foi dito, é o mais puro relatório da verdade. Bebi cerveja 🍺 a R$0,25 nas festas do Lava Prato e Lava Boi em São José de Ribamar, e no bar predileto do Bar do Ruy na rua Jansen Muller atrás da Refesa. Bons tempos.
Cleiton Reis, obrigado pelo seu depoimento. Temos o compromisso de contar um pouco dessa história. Eram muitas pessoas envolvidas no processo. Do mestre-cervejeiro ao consumidor.